terça-feira, 16 de junho de 2020

Autores da Cepe refletem sobre o racismo

Cannibal, Fabiana Moraes, Homero Fonseca, Jorge Lopes e Miró da Muribeca erguem suas vozes na luta antirracista
 

As últimas manifestações contra o racismo e a violência policial foram as mais intensas desde a morte de Martin Luther King Jr., em 1968. Cidadãos do mundo inteiro, brancos e negros, asiáticos e latinos, quebraram o isolamento social de um mundo acuado pela pandemia e foram às ruas aos gritos de “Black lives matter”, “Vidas negras importam”. As palavras de ordem viralizaram. Todos movidos pela indignação causada pela frieza com que um policial branco ajoelhou-se por 8 minutos e 46 segundos sobre o pescoço do afro-americano George Floyd, até matá-lo por asfixia.  “I can’t breathe” (não consigo respirar) foram as últimas palavras de Floyd, algemado, imobilizado, no meio de uma rua de Minneapolis, no dia 25 de maio. Cinco autores com livros editados pela Cepe se posicionaram em relação a essa mazela chamada racismo.

A efervescência provocada pela revolta dos protestos chegaram a lembrar o ambiente revolucionário da década de 1960, concorda o jornalista e escritor Homero Fonseca (1968 – Abaixo as ditaduras, Cepe, 2018). Cuidadoso, o autor traça esse paralelo, com ressalvas. Desconta as enormes diferenças de conteúdo, especificidades e abrangência, entre esses dois momentos.


“As manifestações atuais repetem, com maior ênfase, a luta permanente contra o racismo nos Estados Unidos e acrescentam a pauta do antifascismo, que não estava colocada há 52 anos no hemisfério norte. Também transbordam para parte do mundo, especialmente a Europa. E chegam ao Brasil, onde diariamente a polícia mata negros e não há comoção alguma”, diz.

Homero acredita que o assassinato de George Floyd acendeu uma centelha no Brasil lembrando nomes de algumas das muitas crianças negras vítimas da violência policial e/ou racial, como João Pedro e Ágata, e tantos jovens de nossas periferias.

“Eis que o autoritarismo bate à nossa porta, entra em nossos lares pela televisão e pela  internet, vocifera nas ruas e ameaça os restos de nossa combalida democracia. Os tempos são outros e as perdas e ganhos daquelas manifestações de meio século atrás ainda são debatidos. Não sabemos o que acontecerá amanhã. Mas temos certeza de que o relato do que aconteceu ajudará a refletir sobre o hoje e suas interrogações”, analisa o autor.

Para a jornalista, professora e pesquisadora do Núcleo de Design e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (NDC/UFPE), Fabiana Moraes (Nabuco em pretos e brancos, Editora Massangana, 2012), os protestos acendem o debate no mundo inteiro.



“É importante sublinhar que a luta antirracista, em solo nacional, acontece há décadas, sem que parte expressiva da classe média e das celebridades tenha se apresentado, como agora.  O assassinato de Claudia Ferreira em 2014, o assassinato de Marielle Franco em 2018, o assassinato de Agatha em 2019, são exemplos. É fundamental que a imprensa visibilize positivamente esse momento e que aqueles e aquelas que aderiram agora mantenham-se firmes nessa briga, que é dura. Falar sobre racismo em um país que até hoje adora olhar para si como pacífico e agregador é um verdadeiro tabu social. Mesmo em 2020”, critica a escritora.

Para o vocalista da banda Devotos, Cannibal (autor do livro Música para o povo que não ouve, Cepe 2018), o que aconteceu com George Floyd acontece constantemente nas comunidades, subúrbios, favelas e ocupações. “Sempre fico desconfortável quando falo sobre racismo. Minha reflexão sobre esse crime é que temos que nos organizar não só com manifestações contra o racismo, temos que nos organizar politicamente, culturalmente e mostrar o quanto somos necessários para a sociedade”, ressalta o artista negro, que mora no Alto José do Pinho.

Quebrar o padrão de embranquecimento da sociedade, onde os negros estão sempre em segundo plano, é essencial para o autor. Entretanto, Cannibal acredita que só um caminho é capaz de tornar essa realidade possível: “Educação de qualidade para todos, com professores bem remunerados para podermos exigir a evolução dos alunos, investir na autoafirmação do jovem negro e na sua capacidade intelectual. Quando se é criança te chamam tanto de neguinho burro que você cresce achando que é burro mesmo e fica desestimulado a estudar”, desabafa.

O depoimento de Cannibal torna-se ainda mais contundente quando ele fala do racismo dirigido a crianças negras, e lembra a morte do menino Miguel, ocorrida no dia 2 de junho. O caso do garoto de 5 anos, que caiu do 9º andar de um edifício de luxo no Recife, reverberou no auge da marcha antirracista mundo afora. O filho da doméstica que o deixou aos cuidados da patroa, enquanto levava o cachorro da casa para passear, causou revolta no País inteiro.

“O racismo que matou o menino Miguel é um dos mais cruéis, pois é feito contra crianças indefesas que não conhecem o olhar da maldade. Quando se tem discernimento dessas coisas, nós negros ligamos o sinal de alerta. Embora acuados ficamos espertos pois o mau pode agir a qualquer momento. No caso de uma criança isso não é possível. Só Deus Pai Oxalá para protegê-los. Não sou violento, acredito no ser humano e na mudança dos homens. Crio minha filha com muito carinho e amor, mas o mundo parece que não vai dar a ela o carinho e o amor que eu dou. Criamos nossos filhos com os ensinamentos de Martin Luther King ou com os ensinamentos de Malcolm X?”, questiona o compositor.

Ao falar da morte do George Floyd, o poeta Miró da Muribeca (Miró até agora, Cepe 2016) diz que já perdeu as contas de quantas vezes sofreu com a violência policial. Lembra que aos 24 anos mantinha a cabeleira igual a do compositor alagoano Djavan. Certa vez saía do Recife Antigo para pegar o bacurau (como se chamava o último ônibus a passar na noite), quando um policial o abordou perguntando para onde ele iria. Miró respondeu que não estava indo, mas voltando. Explicou que ia pegar o ônibus para o bairro da Muribeca, onde morava.

O policial considerou a resposta um desacato. E aí seguiu-se uma série de humilhações. Mandou o poeta tirar as calças, puxou o cabelo dele, que chamou de bombril, mandou andar nu pela rua, onde ainda circulavam algumas pessoas. “Fui embora chorando. Imagina se isso fosse num lugar escuro da periferia, eu tava lascado”, lembra.

Miró conta que já passou por situações como essa mais de uma vez, no Recife e em São Paulo. Mostra-se perplexo por ainda existir discriminação e se exalta ao comentar o caso George Floyd, pela forma como foi morto, num país que diz ser exemplo de democracia para o mundo.

Em meio a tudo isso, Miró acrescenta a tristeza da pandemia, o isolamento social e a crise política no Brasil. “Quando eu era criança diziam que o mundo iria acabar no ano 2000, pra mim o mundo tá acabando agora em 2020, porque é tanta coisa absurda! Eu tenho 59 anos aí eu penso: Meu Deus, o que é que falta acontecer?”

Só uma coisa o consolou nesse episódio, a marcha das pessoas nos protestos antirracistas. Miró ainda não conseguiu escrever sobre o que está acontecendo, mas em relação ao passado das agressões sofridas por ser negro diz: “Me vinguei com minha poesia”.

“O mundo me deixa triste, não sei nem o que dizer.” Com essas palavras, o ícone da poesia underground, Jorge Lopes (Poemas reunidos, Cepe 2020), ressalta desalentado o passado histórico de segregação nos EUA. Apesar das manifestações antirracistas, o poeta acredita que o preconceito ainda perdurará por muito tempo. “É uma luta muito árdua pro negro se libertar”, enfatiza. 

As memórias o fazem lembrar do próprio passado, marcado pelo preconceito. “Sempre fui prejudicado, ridicularizado pela cor, mas conseguia superar. Quando eu estudava na Escola Técnica Federal, no início dos anos 70, só tinha três alunos negros. Fora a gente, não tinha negro nem varrendo a escola”, conta.

Na sua antologia poética, publicada este ano pela Editora Cepe, que nem chegou a ser lançada em razão da pandemia, há um poema em homenagem ao artista negro Basquiat. Americano, do Brooklyn, que segundo Jorge revolucionou a pintura como precursor da grafitagem. Para o poeta, os versos se aplicam a esses dias tão difíceis.

 

Basquiat
O homem impávido
A máquina grávida
Os automóveis brilham ao sol
Os ratos brincam na sala
Os inocentes choram os seus dias


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